sábado, 21 de abril de 2018

Zanoni X





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Capítulo X

 Sozinha na Multidão

“Che difesa miglior ch’usbergo e scudo, e la santa innocenza al petto ignudo!” Gerusal. Lib., canto VIII, 12

“Defesa melhor do que a couraça e o escudo, é a santa inocência, para o peito descoberto!”


Conforme os seus últimos desejos, o músico e o seu bárbito foram enterrados juntos, no mesmo ataúde.
Ó bárbito, famoso descendente de Steiner - primeiro Titan da grande raça tirolesa - tantas vezes tentou subir aos céus, e, por isso, há de baixar, como os comuns filhos dos homens, ao tenebroso Hades! É um destino mais cruel o seu, de que o seu mortal dono; pois a sua alma desceu contigo ao sepulcro, ao passo que a música que pertence a ele, separado do instrumento, sobe às alturas, e poderá ser ouvida muitas vezes pelos ouvidos piedosos de uma filha, quando o céu estiver sereno e a terra triste.
Porque há pessoas privilegiadas cujos sentidos percebem o que não é dado perceber ao vulgo. E as vozes dos mortos murmuram com doçura e frequentemente aos ouvidos dos que sabem unir a memória com a fé.
E Viola está, agora, só no mundo; só na casa onde a solidão lhe parecera, desde sua infância, uma coisa fora da sua índole. E, ao princípio, a solidão e o silêncio eram insuportáveis.

Homens ou mulheres tristes, a quem estas folhas sibilinas, carregadas de vários escuros enigmas, vieram à mão, não é verdade que, quando a morte de alguma pessoa querida tornou desolado o seu lar, encontrou insofrível e pesada demais a tristeza de sua morada? E que, embora fosse um palácio, a trocaria por uma humilde cabana? E, todavia, - é triste dizê-lo, - quando, no lugar estranho onde procura o seu refúgio, nada lhe fala dos que tem perdido, não tem sentido uma necessidade de alimentar a sua memória com as mesmas recordações que antes lhes pareceram tão amargas e insuportáveis? Não é quase ímpio e profano abandonar aquele lar querido a pessoas estranhas? Por isso, o haver abandonado a casa onde seus pais viveram e lhes acariciaram, é tão amargo e pesa sobre sua consciência, como se tivesse vendido os seus túmulos. Era bela a superstição etrusca, segundo a qual os antepassados se convertiam em deuses domésticos. Surdo é o coração ao qual os Lares chamam em vão da sua morada deserta.
Viola, em sua intolerável angústia, a princípio aceitou, cheia de gratidão, o refúgio que lhe oferecera em sua casa uma família da vizinhança, cujo chefe, íntimo amigo e companheiro de orquestra de Pisani, recebeu com prazer a desamparada órfã.

Todos procuravam dissipar as mágoas da jovem, porém, a companhia de pessoas estranhas ao nosso pesar e os consolos que nos dão, só irrita a nossa ferida. E, depois, não é cruel ouvir pronunciar em outra parte os nomes de pai, mãe e filho, - como se a morte só a sua casa tivesse visitado, - ver ali a calma e a regularidade dos que vivem unidos em amor e tranquilos, contando as suas horas felizes no relógio imperturbável da vida doméstica, como se o dos demais não tivessem suas rodas paralisadas, sua corda rompida e sua pêndula sem movimento?
Não há nada, nem a tumba mesma, que nos lembre tão amargamente a morte das pessoas queridas, como a companhia dos que não têm perda alguma a chorar. Volta à sua solidão, jovem órfã; volta à sua casa; a tristeza que a aguarda no umbral da porta, a saudará como um sorriso na face dos mortos. E ali, da sua janela, e ali, da sua porta, verá ainda aquela árvore, solitária como você, que cresce no meio da rocha, mas esforça-se por atingir a luz, - como, através de todas as mágoas, enquanto as estações ainda podem renovar o verdor e a flor da juventude, o instinto do coração humano também luta! Só quando se esgotou a seiva, só quando o tempo produziu o seu efeito, brilha o sol em vão para o homem e para a árvore.

Passaram-se, entretanto, semanas e meses, - muitos meses bem tristes, - e Nápoles não permitia por mais tempo, que o seu ídolo viva isolado; querem ouvi-la, querem admirá-la e tributar-lhe novamente suas homenagens. O mundo, apesar de nossos esforços, nos arranca de nossa situação com seus milhares de braços. E novamente a voz de Viola vibra no teatro, o qual, misticamente fiel à vida, em nada é mais fiel do que na ideia de que a aparência que faz a cena; e nós não nos damos tempo para perguntar quais são as realidades que essas aparências representam. Quando o ator de Atenas comovia todos os corações, prorrompendo em amargos soluços ao estreitar em seus braços a urna cinerária, quão poucos ali sabiam que abraçava as cinzas de seu filho!

O ouro e a fama choviam sobre a jovem atriz; mas ela seguia sempre o seu singelo modo de vida, habitando a mesma humildade morada onde viveram seus pais, e sem mais criados do que a sua velha aia, na qual a pouca experiência de Viola não descobria defeitos, nem percebia o egoísmo. Gianetta foi a primeira que a pusera nos braços de seu pai, quando Viola veio ao mundo!

A jovem via-se cercada de muitas atenções e cortejada por uma multidão de aduladores que espreitavam aproveitar-se de sua não guardada beleza e da sua perigosa profissão. Mas a virtude de Viola passava imaculada por meio de todos os seus galanteadores. É verdade que lábios, agora mudos, lhe haviam ensinado os deveres que a honra e a religião impõem a uma jovem, e, todo amor que não falasse do matrimônio, desprezado e repelido pela formosa atriz. Além disso, a tristeza e a solidão amadureceram o seu coração, e fizeram-na tremer, às vezes, ao pensar como profundamente sentia, e as suas vagas visões de outro tempo transformarem-se num ideal de amor. E enquanto o ideal não é achado, como a sombra que ele projeta, torna-os frios à realidade que nos cerca! Com esse ideal, sempre e sempre, inconscientemente, e causando-lhe uma espécie de medo e admiração, vinha mesclar-se a figura e a voz do estrangeiro que lhe tinha falado do futuro. Perto de dois anos tinham já decorrido, desde que aquele homem aparecera em Nápoles pela primeira vez. Nada mais se soube, depois, exceto que o seu navio se havia feito à vela rumo a Livorno. Para os amantes de novidades em Nápoles, a sua existência, apesar de supor-se extraordinária, foi muito rapidamente esquecida; porém o coração de Viola era mais fiel. Frequentemente aquele homem apresentava-se em seus sonhos, e quando o vento fazia gemer os ramos daquela árvore fantástica associada com suas lembranças, Viola se sobressaltava e corava, como se o ouvisse falar.

Entretanto, entre a turba de admiradores da artista, havia um que ela escutava com mais complacência do que aos outros; já, talvez, porque ele falava o idioma pátrio de sua inolvidável mãe; já porque a timidez do moço o fazia pouco perigoso; já porque a sua condição social, mais próxima à da atriz do que a dos demais ilustres galanteadores tirava à sua admiração toda aparência de insulto; e já porque, com sua eloquência e seu caráter sonhador, manifestava, muitas vezes, ideias que se assemelhavam muito às dela. Viola começou a querer-lhe bem, a amá-lo talvez, porém, como uma irmã ama a seu irmão; entre ambos nasceu uma espécie de privilegiada familiaridade. Se no coração do inglês se abrigavam esperanças menos nobres, nunca as havia manifestado nem remotamente. Há perigo, solitária Viola, nesta amizade, ou há um perigo maior no seu ideal que não pode encontrar no mundo das realidades?

E agora  vamos  cerrar  esta primeira parte do livro, que, como um prelúdio, há de conduzir-nos a um espetáculo estranho e surpreendente. Quer ouvir mais, leitor? Venha, pois, com sua fé preparada. Não peço que feche os olhos, mas traga os seus sentidos bem despertos. Como a encantada Ilha, distante dos lares humanos, “aonde raras vezes ou nunca vai um navio das nossas costas” é a paragem do tumultuoso oceano da vida comum, onde a Musa ou Sibila lhe oferece um santo asilo, - “ali ela sobe a uma montanha despovoada e obscurecida por sombras; e por encanto lhe amontoa neve nas espaldas e nos flancos, e sem neve alguma lhe deixa a cabeça verdejante e linda; e, perto de um lago, constrói um palácio”.

(continua)



Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni