terça-feira, 27 de março de 2018

Zanoni V








Zanoni

Capítulo V

Um Encontro Misterioso

“QuelIo Ippogrifo, grande e strano augello Lo porta via”.

“Aquele Hipogrifo, grande e maravilhoso pássaro, leva-o embora”.

Orlando Furioso, canto VI, 18.

Agora, acompanhando este misterioso Zanoni, tenho que deixar, por algum tempo, Nápoles. Monta, leitor amigo, na garupa do meu hipogrifo, coloque-se nele da melhor forma que puder. Há poucos dias que comprei a sela a um poeta amante da comodidade, e depois fiz recheia-la para você se acomodar nela melhor. Assim pois, montemos! Veja como nos levantamos nos ares, - olhe! - não tema, os hipogrifos nunca tropeçam e, na Itália, estão acostumados a carregar cavaleiros de avançada idade. Dirija o seu olhar à terra, debaixo de nós! Ali, perto dos rumas da antiga cidade osca, chamada Átela, se levanta Aversa, outrora uma praça forte dos normandos; ali brilham as colunas de Cápua, sobre a corrente do Vulturno. Eu os saúdo, férteis campos e vinhas, célebre pelo famoso velho vinho de Falerno! Eu os saúdo, ricas campinas onde crescem as doiradas laranjas de Mola di Gaeta! Saúdo também os lindos arbustos e flores silvestres, “omnis copia narium”, que cobrem as ladeiras da montanha do silencioso Látula! Pararemos na cidade volsca de Anxur, - a moderna Terracina, - cujo sublime rochedo se assemelha a um gigante que guarda os últimos limites da meridional terra do amor. Adiante! Adiante! e retenhamos o fôlego enquanto voarmos por cima dos Pântanos Pontinos. Medonhos e desolados, os seus miasmas são, para os jardins que temos atravessado, o que a vida comum é para o coração que deixou de amar. Lúgubre Campagna, que se apresenta â nossa vista em toda sua majestosa tristeza. Roma, cidade das sete colinas! Recebe-nos como a Memória recebe o viajante cansado; recebe-nos em silêncio, no meio de suas rumas!

Onde está o viajante que procuramos? Deixemos o hipogrifo apascentar-se, solto: ele gosta do acanto que trepa por aquelas colunas rompidas. Sim, aquele é o arco de Tito, o conquistador de Jerusalém; ali está o Coliseu! Por um, passou em triunfo o divinizado invasor; no outro, caiam ensanguentados os gladiadores. Monumentos de matanças, como pobres são os pensamentos, e como mesquinhas as lembranças que despertam, comparados com o que dizem ao coração do homem as alturas de Phyle, ou o seu solitário dique, pardo Marathon! Estamos no meio de cardos, espinhos e ervas silvestres. Aqui, onde estamos, reinou, outrora, Nero; aqui estavam seus pavimentos marchetados; aqui, “como um segundo céu”, se elevava a abobada de tetos de marfim; aqui, arco sobre arco, pilar sobre pilar, resplandecia ante o mundo o doirado palácio do seu senhor, - a Casa de Ouro de Nero. Olhem como o lagarto nos observa com seus olhos brilhantes e tímidos! Perturbamos o seu reino. Colham aquela flor silvestre: a Casa de Ouro desapareceu, mas a flor silvestre talvez seja da família das flores que a mão do estrangeiro espalhou por cima do sepulcro do tirano; veja, como a Natureza faz crescer ainda as flores silvestres sobre este solo, que é a tumba de Roma!

No meio desta desolação, levanta-se um velho edifício do tempo da Idade Média. Ali mora um singular recluso. Na época das febres, os camponeses daquela região fogem da viçosa vegetação destes lugares; mas ele, que é um estrangeiro, respira sem temor o ar pestilento. Este homem não tem amigos, sócios, nem companheiros, a não ser os livros e instrumentos científicos. Muitas vezes é visto como anda pelas verdejantes colinas, ou como passeia pelas ruas da cidade nova, não com o ar negligente de estudantes, mas com os olhos observadores e penetrantes, que parecem sondar os corações dos transeuntes. É um homem velho, porém robusto, - alto e direito, como se estivesse moço. Ninguém sabe se ele é rico ou pobre. Não pede, nem dá esmola, - não faz mal a ninguém, mas também corno parece, não confere bem algum. Segundo todas as aparências, este homem vive só para si; mas as aparências são enganadoras, e a Ciência como também a Benevolência, vivem para o Universo. É pela primeira vez, desde que esse homem habita esta morada, que nela entra um visitante. E este é Zanoni.
Veja esses dois homens sentados um ao lado do outro, e conversando seriamente. Muitos anos haviam transcorrido desde que se viram pela última vez, - ao menos corporalmente, face a face. Porém, se são sábios, o pensamento de um pode ir ao encontro do pensamento do outro, e o espírito daquele voa em busca do espírito deste, embora os oceanos separem as formas. Nem a morte mesma é capaz de separar os sábios. Você se encontra com Platão, quando os seus olhos umedecidos se fixam sobre o seu Phedon. Oxalá Homero viva eternamente com os homens!

Os dois homens estão conversando; comunicam um ao outro suas aventuras; evocam o passado e o reprovam; porém, observe com que modos distintos afetam as recordações. No semblante de Zanoni, apesar da sua calma habitual, as emoções aparecem e se somem. Ele agiu no passado que está recordando; ao passo que nem o menor vestígio dessas tristezas ou alegrias, de que participa a humanidade, pode descobrir-se no semblante insensível do seu companheiro; para este, o passado, o mesmo que o presente, não é mais do que a Natureza para o sábio, ou o livro para o estudante, - uma vida tranqüila e espiritual, um estudo, uma contemplação.
Do passado dirigem-se ao futuro! Ah! pelos fins do século XVIII, o futuro parecia uma coisa tangível, - estava enlaçado com os temores e as esperanças do presente.
Aos limites daquele século, o Homem, o filho mais maduro do Tempo, estava como no leito de morte do Velho Mundo, olhando o Novo Horizonte, envolto entre nuvens e ensangüentados vapores, - não se sabendo se representava um cometa ou um sol. Observe o frio e profundo desdém nos olhos do ancião, - a sublime e tocante tristeza que obscurece o imponente semblante de Zanoni. É que, enquanto um olha com indiferença a luta e o seu resultado, o outro a contempla com horror e compaixão! A sabedoria, contemplando o gênero humano, só conduz a estes dois resultados: ao desdém ou à compaixão.

Quem crê na existência de outros mundos, pode acostumar-se a considerar este mundo assim como o naturalista considera as revoluções de um formigueiro ou de uma folha. Que é a Terra para o Infinito? Que valor tem a sua duração para o Eterno?
Oh! quantas vezes a alma de um só homem é mais importante e maior do que as vicissitudes de todo o globo! Filho do céu, e herdeiro da imortalidade! como, e quando residindo numa estréia, olharás depois o formigueiro e suas comoções, desde Clovis até Robespierre, desde Noé até o Juízo Final! O espírito que sabe contemplar, e que vive somente no mundo intelectual, pode subir à sua estrela, embora ainda viva neste cemitério chamado Terra, e enquanto o sarcófago chamado Vida, ncerra em suas paredes de barro a essência eterna!
Porém você, Zanoni, - se recusou a viver somente no mundo intelectual; você não mortificou o coração; o seu pulso bate ainda com a doce música de paixão dos mortais; a humanidade é para você ainda uma coisa mais atrativa do que o abstrato, - você quis ver essa Revolução em seu berço, que a tempestade embala, e quis ver o mundo enquanto os seus elementos lutam para sair do caos!
Vai, pois!

(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni