sábado, 24 de março de 2018

Zanoni IV








Zanoni

Capítulo IV

De Repente se Encontram...

E cosi i pigri e timidi desiri Sprona”.

E assim estimula os lentos e túmidos desejos”.

Era costume de Pisani, exceto quando os deveres de sua profissão lhe exigiam o sacrifício do seu tempo, dedicar uma parte do meio-dia ao sono; costume que não era tanto um luxo, como uma necessidade para um homem que dormia pouco de noite. Com efeito, as horas do meio-dia eram exatamente o tempo em que Pisani não podia fazer nada, nem compor, nem se exercitar, mesmo que o quisesse. O seu gênio assemelhava-se às fontes que estão cheias de manhã cedo e ao entardecer, abundantes de noite, e inteiramente esgotadas ao meio-dia. Durante este tempo que o músico consagrava ao descanso, a sua esposa costumava sair de casa, a fim de comprar o necessário para a família, ou para aproveitar (e qual é a mulher que não gosta de fazê-lo?) a ocasião de poder conversar um pouco com outras pessoas de seu sexo. E no dia seguinte ao daquele brilhante triunfo, quantas felicitações a esperavam!
Viola, por sua vez, costumava sentar-se, a essas horas, fora da porta da casa, debaixo de um toldo estendido para preservar do sol, mas que não impedia a vista. Ali, com o livro posto sobre os joelhos, no qual seus olhos se fixavam negligentemente de vez em quando, você a veria contemplar as folhas da parreira que pendiam da latada que havia por sobre a porta, e os ligeiros barcos que, com as velas brancas, deslizavam, levantando flocos de espuma, ao longo da praia que se estendia a perder de vista.
Enquanto Viola estava assim sentada, entregue antes a um sonho do que a pensamentos, um homem que vinha ao lado de Posilippo com passo lento e os olhos baixos passava por diante da casa e a jovem, levantando os olhos de repente, ficou sobressaltada ao ver diante de si o estrangeiro que a havia fitado no teatro. Ela deixou escapar uma involuntária exclamação, e o cavalheiro, volvendo a cabeça, avistou-a e parou.
Ficou por um instante mudo diante da jovem, contemplando-a; aquele silêncio era demasiado sério e tranquilo para que pudesse interpretar-se como uma demonstração de galanteria. Por fim, falou:
É feliz, minha filha, - perguntou-lhe em tom quase paternal, - na carreira que escolheu? Dos dezesseis anos aos trinta, a música do suave rumor dos aplausos é mais doce do que toda a música que sua voz pode exprimir.
Não sei, - respondeu Viola, em tom vacilante, porém animada pelo afável acento da voz que se lhe dirigia, - não sei se sou feliz ou não, neste momento; mas fui feliz ontem à noite. E também sinto, Excelência, que devo agradecer-lhe, ainda que, talvez, não saiba o motivo disso.
Engana-se, - disse sorrindo o cavalheiro; - eu assisti ao seu merecido sucesso, e você talvez não saiba de que maneira. O “porquê”, eu lhe direi: porque vi que se albergava no seu coração uma ambição mais nobre do que a vaidade de mulher; foi a filha que me interessou. Talvez você preferisse que eu admirasse a artista?
Não; oh! não!
Bem, eu creio. E agora, já que nos encontramos assim, quero dar-lhe um conselho. Quando for outra vez ao teatro, terá aos seus pés todos os jovens galantes de Nápoles. Pobre menina! A fama que deslumbra a vista, pode queimar as asas. Não esqueça que a única homenagem que não mancha, é a que nenhum desses aduladores lhe fornecerá. E por mais elevados que sejam os seus sonhos futuros, - e eu estou vendo neste momento, enquanto falo contigo, como são extravagantes e exagerados - Oxalá que só se realizem aqueles que se refiram à vida tranquila do lar.

Quando o desconhecido se calou, o peito de Viola palpitava agitadamente sob o fino corpete. E, cheia de uma natural e inocente emoção, compreendendo imperfeitamente, apesar de ser italiana, a gravidade do aviso, exclamou:
Ah, Excelência! Não pode fazer idéia de como já me é caro esse lar. E meu pai - ah! para mim não haveria lar, sem meu querido pai!
O semblante do cavalheiro cobriu-se de profunda e melancólica sombra. Ele olhou a tranqüila casa, construída entre as parreiras, e fixou outra vez os seus olhos na vívida e animada face da jovem atriz.
Está bem, - disse. - Uma jovem singela não necessita outro guia que o seu coração inocente. Avante, pois, e prospere!
Adeus, bela cantora!
Adeus, Excelência; porém... - e um impulso irresistível, uma espécie de ansiedade, um vago sentimento de temor e de esperança, a impeliu a perguntar: - tornarei a vê-lo em São Carlos?
Não, pelo menos por algum tempo. Hoje deixo Nápoles.
Sim! - E, ao dizer isto, Viola sentiu-se desfalecer. O teatro perdia para ela toda a sua poesia.

E, - disse o cavalheiro, voltando atrás, e pondo suavemente sua mão sobre a da jovem - e, talvez, antes que tornemos a nos ver, você terá sofrido, e conhecido as primeiras dores agudas da vida humana, e saberá quão pouco tudo o que a fama pode dar, substitui o valor do que o coração pode perder; mas seja forte e não ceda, nem ao que possa parecer tristeza devida ao amor filial. Observe aquela árvore no jardim do seu vizinho. Veja como cresce, curvada e torcida. Algum sopro de vento trouxe o gérmen, do qual ela brotou, à fenda da rocha; cercada de rochedos e edifícios, oprimida pela Natureza e pelo homem, a sua vida tem sido uma contínua luta pela luz, - luz que é a necessidade e o princípio dessa vida mesma: veja como se tem agarrado e enroscado; como, onde encontrava uma barreira, esforçou-se, criando o caule e os ramos, por meio das quais conseguiu elevar-se e pôr-se em contato com a clara luz do céu. Que é o que a tem preservado e protegido contra todas as desvantagens do seu nascimento, e contra as circunstâncias adversas? Porque são as suas folhas tão verdes e formosas como as da parreira que estão aqui, e que, com todos os seus braços, desfruta o ar e o sol, sem empecilhos? Minha filha é porque o instinto, que impelia a lutar, porque os esforços que tem feito para alcançar a luz, a levaram a alcançar por fim, essa luz que tanto procurava. Assim, pois, com o coração valente, atravesse os adversos acidentes e as mágoas do fado, dirigindo o olhar interno ao sol, e lutando para alcançar o céu; é esta luta que dá saber aos fortes, e felicidade aos fracos. Antes que nos tornemos a ver, você terá olhado mais de uma vez, com olhos tristes e pesados àqueles ramos, e quando ouvir como as aves trinam, pousando neles, e quando vir como os raios do sol, vindo, de esguelha, do rochedo e da cumeeira da casa, brincam com as suas folhas, aprenda a lição que a Natureza lhe ensina, e lute, atravessando as trevas, para chegar à luz!
Assim que o desconhecido acabou de falar, afastou-se lentamente, deixando Viola admirada, silenciosa, tristemente impressionada pela predição do próximo mal, e, contudo, encantada pela sensação desta tristeza. Involuntariamente os olhos da virgem seguiram o estrangeiro, - involuntariamente estendeu os seus braços, como se quisesse detê-lo com o gesto; teria dado um mundo para vê-lo voltar, - para poder ouvir outra vez aquela voz suave, calma e sonora, e para poder sentir outra vez aquela leve mão na sua. A presença desse homem produzia o efeito dos débeis raios da lua fazendo ressaltar beleza dos ângulos que ilumina; - e, como quando a lua deixa de brilhar, os objetos reassumem seu aspecto ordinário, de aspereza e vida prosaica, quando o estrangeiro se retirou, a Viola apareceu novamente sombria a cena que se apresentava a seus olhos.
O estrangeiro seguiu andando pelo longo e pitoresco caminho que conduz aos palácios em face dos jardins públicos, e dali aos bairros mais populosos da cidade.
Um grupo de jovens cortesãos, desses que passam a vida em ócio e orgias, tendo invadido a porta de uma casa estabelecida para o favorito passatempo do dia, e onde se reuniam os mais ricos e ilustres jogadores, - abriu passo ao estrangeiro, quando passou diante deles, saudando-os cortesmente.

“Per fede” - disse um, - não é esse o rico Zanoni, de quem fala toda a cidade?
Ah! Dizem que a sua riqueza é incalculável!
Dizem, - mas quem é que o diz? Quem pode afirmá-lo com autoridade? Há muito poucos dias que ele está em Nápoles; e não pude encontrar uma só pessoa que soubesse dizer algo a respeito do seu lugar de nascimento, de sua família, nem, o que é mais importante, dos seus bens!
É verdade; porém ele chegou ao nosso porto num magnífico navio que, segundo dizem, é de sua propriedade. Veja-o - não, você não pode vê-lo daqui; mas está ancorado lá na baía. Os banqueiros com quem Zanoni trata, falam, cheios de respeito, das quantias que depositou em suas mãos.
Donde veio ele?
De algum porto de Levante. O meu lacaio soube, por boca de alguns marinheiros do Molhe, que ele viveu muitos anos no interior da Índia.
Ah! Eu ouvi dizer que na Índia se encontra o ouro assim como aqui os seixos, e que lá há vales onde os pássaros constroem seus ninhos com esmeraldas, para atrair os insetos. Ai vem Cetoxa, o nosso príncipe dos jogadores; estou certo de que ele já conhece este rico cavalheiro, pois o nosso amigo sente tanta atração para o ouro, como o imã para o aço. Olá, Cetoxa! Que novidade nos traz a respeito dos ducados do senhor Zanoni?
Oh! - disse Cetoxa, com indiferença, - falavam do meu amigo?
Ah! ah! Ouviu-o; o seu amigo... - Sim; o meu amigo Zanoni foi a Roma, onde permanecerá por alguns dias; ele me prometeu que, quando estiver de volta, me designará um dia para vir cear comigo, e então o apresentarei aos meus amigos, e à alta sociedade napolitana! Diávolo! Asseguro-lhes que é um cavalheiro muito agradável e espirituoso!
Faça o favor de contar-nos o que fez para ser, tão de repente, seu amigo.
Nada mais natural, meu caro Belgioso. Zanoni desejava ter um camarote em São Carlos; creio não ter necessidade de dizer-lhes que, se tratando de uma ópera nova (ah! e que ópera tão magnífica! - esse pobre diabo, o Pisani! - quem o haveria pensado?) e de uma nova cantora (que rosto! e que voz! - ah!) estavam tomados todos os lugares do teatro. Ouvi dizer que Zanoni desejava honrar o talento de Nápoles, e como mandam as boas normas da civilidade, quando se trata de um distinto estrangeiro, mandei por à sua disposição o meu camarote. Ele aceitou; fui visitá-lo nos entreatos; é um homem encantador! Convidou-me a cear com ele. Caspita! Que comitiva! Estivemos à mesa até muito tarde, - eu lhe contei todas as notícias de Nápoles; tornamo-nos mui amigos. Antes de separar-nos, obrigou-me a aceitar este diamante. - “É uma bagatela”, - disse-me; - “os joalheiros a avaliam em 5000 pistolas”.
Há dez anos que eu não tinha passado uma noite tão divertida.

Os cavalheiros agruparam-se para admirar o diamante.
Senhor Conde Cetoxa, - perguntou um homem de aspecto grave, que se havia persignado duas ou três vezes, enquanto o napolitano fazia esta narração, - não sabe que coisas estranhas se contam a respeito desse homem? E não lhe causa medo o ter recebido dele um presente que pode trazer-lhe as mais funestas conseqüências? Não sabe que se diz que esse homem e um feiticeiro? Que possui o mau olhado? Que...
Vamos, poupe-nos de ouvirmos essas antiquadas superstições, - interrompeu Cetoxa, com desprezo; - elas estão já fora da moda. Nos nossos dias, não impera senão o ceticismo e a filosofia. E, depois de tudo, quem ou o que é que fez surgir estes boatos? Um velho mentecapto de oitenta e seis anos. Em suas tolices, assegura solenemente haver visto esse mesmo Zanoni em Milão, há setenta anos (quando ele, o narrador, era ainda rapaz); mas, como sabem, Zanoni não é mais velho do que eu ou o senhor, Belgioso.
Pois bem, - disse o sério cavalheiro, - este é, precisamente, o mistério. O velho Aveli diz que esse Zanoni não parece estar um dia mais velho do que naquele tempo, quando o encontrou em Milão. Ele diz também, note-se isto, que já então, embora sob um nome diferente, este Zanoni se apresentou naquela cidade com o mesmo esplendor, e envolto no mesmo mistério, pois havia lá um homem que se lembrava de tê-lo visto, sessenta anos antes, na Suécia.
Bah! - replicou Cetoxa, - o mesmo se tem dito do charlatão Cagliostro, meras fábulas, em que eu acreditarei só quando este diamante se transformar numa mancheia de feno. Além disso, - acrescentou com ar sério, - considero este ilustre cavalheiro meu amigo e qualquer conversação que no futuro tenda a manchar sua reputação ou sua honra, considerarei como uma ofensa feita a mim mesmo.
Cetoxa era um terrível espadachim, e possuía uma habilidade particular, que ele mesmo tinha inventado, para aumentar a variedade de estocadas. O bom e sério cavalheiro, se bem que ansioso pela felicidade espiritual do conde, não perdia de vista a sua segurança corporal; assim é que se contentou em dirigir-lhe um olhar de compaixão, e entrou para a casa, subindo, em seguida, à sala onde estavam as mesas de jogo.
Ah! ah! - exclamou Cetoxa, rindo, - o nosso bom Loredano cobiça o meu diamante. Cavalheiros, estão convidados a cear comigo esta noite. Eu lhes asseguro que nunca, em minha vida, encontrei uma pessoa mais amável, mais sociável e mais espirituosa do que o meu querido amigo, o senhor Zanoni.

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni